A ciência nos anos 2010 (pt. 2)

Aqui chega ao fim nossa série sobre ciência nos anos 2010. Agradecemos especialmente a todos que nos acompanharam em nosso Instagram (@academicamenteblog) nas últimas semanas, onde postamos, dia a dia, sobre cada um dos 10 acontecimentos que selecionamos. Esperamos, de coração, que vocês tenham gostado deste novo formato de texto. De buracos negros a doenças misteriosas, do caos climático à descoberta de novas ferramentas para edição genética, fiquem agora com a segunda parte da nossa lista 😉

5º lugar: Doenças emergentes (e suas curas)

Os últimos dez anos foram muito marcados pelo surgimento de novas e diversas epidemias. Principalmente as causadas por vírus, que são facilmente transmitidas e disseminadas. E nós podemos atribuir, ao menos em parte, o aparecimento dessas novas doenças à conversão dos ambientes naturais a paisagens urbanas, em que grandes concentrações humanas são expostas a vetores (em geral mosquitos), que acabam explorando as cidades na ausência de seus habitats naturais.  Com isso, muito é investido (ou, pelo menos era pra ser) em pesquisas aplicadas com a finalidade de criar métodos de detecção rápida e formular vacinas que controlem os surtos epidemiológicos. 

Ebola

Um dos mais alarmantes dos últimos 10 anos foi o caso do filovírus Ebola. Apesar de descrito em 1976, e com vários surtos restritos ao continente africano desde então, só em 2014 ele foi considerado motivo de alarde em boa parte do mundo, noticiado massivamente nos veículos de comunicação. Apesar de corriqueiramente chamarmos de “o vírus Ebola”, na verdade são conhecidas cinco variedades diferentes, chegando a mais de 80% de letalidade em algumas delas. Inicialmente o vírus foi transmitido a humanos que entraram em contato com sangue e fluidos corporais de animais infectados, como macacos e morcegos.

Micrografia eletrônica de transmissão colorida (TEM) da partícula viral de Ebola, com aprox. 14.000 nanômetros de comprimento e diâmetro de 80 nanômetros (Cynthia Goldsmith).

Os principais sintomas incluem febre, vômitos e diarreias, podendo evoluir aos casos mais graves de falência de órgãos. A transmissão do vírus para seres humanos envolve o contato direto destes com sangue e fluidos corporais. E esses foram grandes fatores limitantes para que o Ebola não se disseminasse mais do que o registrado no surto ocorrido em 2014 – matando mais de 11 mil pessoas na África Ocidental até 2016. Entretanto, não parou por aí e os surtos continuam a ocorrer em territórios africanos, como na República Democrática do Congo. Outro surto surgiu recentemente e no período de agosto de 2018 a agosto de 2019 foram registradas mais de duas mil mortes. 

Embora descrito na década de 70 e com a disseminação mais famosa em 2014, apenas em 2019 foi possível o desenvolvimento de uma vacina efetiva para Ebola. Isso é um exemplo de que vacinas não são desenvolvidas do dia para a noite em meio à uma epidemia. Levam-se anos de numerosas pesquisas para que o objetivo seja atingido. O produto foi inicialmente desenvolvido pela empresa norte-americana Merck & Co e autorizado pela Agência Europeia de Medicamentos. A vacina está sendo aplicada desde então segundo as diretrizes da Organização Mundial da Saúde. Até o ano passado, mais de 230 mil pessoas foram vacinadas, incluindo profissionais da saúde, em território congolês e em países vizinhos.

Zika

Outro vírus ficou que foi motivo de grande alarde na década passada foi o Zika. Pertencente à mesma família dos vírus da dengue e da febre amarela – os sintomas são muito semelhantes, incluindo febre e diarreias). Foi isolado inicialmente em 1947 a partir de macacos de Uganda, na África. Por volta de 2014 foi noticiado como infectante de humanos na Nigéria e logo em seguida em outras regiões do mundo, chegando inclusive na América do Sul. Uma das hipóteses é que o vírus tenha vindo por turista durante a época da Copa do Mundo de 2014. Apesar disso, o Zika só foi identificado no Brasil em 2015, por pesquisadores da UFBA. Não levou muito tempo para que quase todos os estados brasileiros tivessem casos da doença, que tem como vetor o tão conhecido mosquito Aedes aegipty

Os primeiros casos não despertaram muitas preocupações, devido à baixa mortalidade inicial. Infelizmente, com os surtos demonstrou-se que o Zika era muito mais preocupante do que o imaginado. Além dos registros de mortes, houve numerosos casos de microcefalia ligados aos casos de infecção viral em gestantes, que foi realmente o mais preocupante noticiado até hoje relacionado ao vírus. Com isso, houve uma verdadeira corrida entre os institutos de pesquisa a fim de desenvolver uma vacina eficaz para a vírus. Uma delas foi desenvolvida pelo Instituto Evandro Chagas, vinculado ao Ministério da Saúde, demonstrou-se eficaz em macacos em 2017 e começou a ser testada em humanos em 2019 pela Fiocruz.

Após o ponto alto da epidemia, no final de 2015 e começo de 2016, o Zika deixou de ser considerado oficialmente pelo Ministério da Saúde como emergencial, entretanto os seus impactos continuam a ocorrer e permanece em grande relevância de saúde pública. Diversos centros de pesquisa, como a Fiocruz e muitos laboratórios de pesquisa em universidades públicas, continuam a trabalhar incansavelmente na produção de conhecimento sobre o Zika vírus para que novos problemas não venham a preocupar a população.



O médico Drauzio Varella publicou uma série de vídeos sobre o Zika. Todos recomendadíssimos.

Panorama atual – Coronavírus

Doenças emergenciais são recorrentes na história da humanidade, com casos bem conhecidos e marcantes desde a peste negra, na idade média, até os mais recentes Ebola e Zika vírus. É uma questão de tempo até que outra epidemia seja noticiada, especialmente no cenário atual de expansão de áreas impactadas pelas ações humanas. O mais recente exemplo, noticiado desde o finalzinho do ano passado até o presente momento, é o SARS-CoV-2, mais conhecido como Coronavírus. Da mesma forma que o Ebola, a transmissão inicial foi atribuída ao contato humano com partes de animais selvagens (morcegos) em feiras de carne na China (hoje já sabemos que provavelmente os vírus podem ter sido originados em pangolins e que ele já circula em humanos há mais tempo do que imaginamos). Dado que os casos são recentes, nenhuma vacina foi desenvolvida até então – e, como no caso do Ebola, deve demorar um tanto para que uma confiável e eficaz seja produzida. Apesar do grande alarde inicial,  ainda não há evidências suficientes para que nós brasileiros nos preocupemos com o alcance da nova doença por aqui. Entretanto, vale destacar que um método muito rápido de detecção do vírus (cerca de 3h) já foi desenvolvido em território nacional, na UFBA, sendo mais um exemplo da qualidade e relevância das pesquisas brasileiras, apesar de todos os recentes desincentivos.



O biólogo e especialista em Virologia Atila Iamarino tem feito uma série de ótimos vídeos, principalmente em seu Instagram (@oatila), sobre o COVID-19.

4º lugar: Edição de genes e técnica CRISPR-Cas9

Os anos 2010 marcaram também o início de uma nova era no que diz respeito à nossa capacidade de manipular e até mesmo editar moléculas de DNA. E isso se deve principalmente à utilização do sistema Crispr-Cas9. Mas que diabos é isso? Bom, para uma série de bactérias esse sistema funciona como um tipo de sistema imunológico, que armazena fragmentos de DNA viral que as penetrem. Após reconhecer estes fragmentos, o sistema é capaz de, no futuro, reconhecer quaisquer outros vírus da mesma natureza e depois cortar o DNA desses organismos em fitas.

Tendo em vista estes mecanismos, em 2012, pesquisadores começaram a propor que o Crispr-Cas9 poderia ser usado como uma ferramenta de edição genética, sobretudo por sua precisa capacidade de cortar o DNA (de maneiras que os cientistas poderiam “facilmente” personalizar). Dentro de poucos meses alguma equipes de pesquisadores confirmaram que a técnica também seria capaz de funcionar no DNA humano. Desde então iniciou-se uma corrida, no mundo inteiro, a fim de identificar sistemas semelhantes ao Cripr-Cas9 e então aplicá-los para questões de extremo interesse público, como agricultura e medicina.

Mas, como sempre, nem tudo são flores.. Embora os possíveis benefícios do Crispr-Cas9 sejam enormes, os dilemas éticos que ele traz consigo são igualmente gigantescos. Em 2018, por exemplo, o pesquisador chinês He Jiankui anunciou o nascimento de duas meninas cujos genomas ele teria editado com o sistema Crispr. Foram os primeiros humanos nascidos com edições herdáveis ​​em seu DNA. Esse acontecimento levou a comunidade acadêmica (ou mesmo a sociedade em geral) a aquecer o debate acerca da regulamentação para este tipo de pesquisa. E este debate deve continuar ganhando cada vez mais espaço, ainda mais se considerarmos que, com tal tipo de experimento já tendo sido concretizado na prática, é bem provável que ainda surjam casos similares, nos colocando à frente de dilemas éticos cada vez mais complexos.

O cientista He Jiankui ficou conhecido em novembro de 2018, após ter anunciado que teria criado os primeiros humanos geneticamente modificados utilizando a técnica do CRISPR/Cas. Em 2019, o Tribunal Popular de Shenzhen do distrito de Nanshan (China) o condenou a três anos de prisão e multou-lhe 3 milhões de yuans (R$1.728.450,00) por violar a proibição do governo chinês de usar tecnologias de edição de genes para criar seres humanos.

3º lugar: Primeira fotografia de um buraco negro

Por muito tempo a ideia de se fotografar um buraco negro foi considerada algo muito próximo ao impossível. Camuflados na escuridão do Cosmos, sem emitir nenhuma luz, uma imagem sua parecia utópica. Mas não para a equipe do projeto Event Horizon Telescope (EHT), que foi finalmente conseguiu registrar o inimaginável. A estonteante novidade foi divulgada ao público em abril de 2019, sendo considerado pela revista Science o acontecimento científico mais marcante do ano passado. E não é pra menos, pois até então ‘apenas’ tínhamos numerosos sinais da existência dos buracos negros (ex. detecção de ondas gravitacionais emitidas quando esses colidem), mas nada de fotografias.

Primeira imagem de um buraco negro, conseguida a partir de observações do Event Horizon Telescope (EHT) do centro da galáxia M87. A imagem mostra um anel brilhante formado à medida que a luz se curva na intensa gravidade em torno de um buraco negro, 6.5 bilhões de vezes mais massivo que o Sol (Event Horizon Telescope Collaboration).
Katie Bouman, responsável pela liderança e desenvolvimento do algoritmo que cruzou e corrigiu os dados obtidos pelo EHT. Foi seu trabalho que, fundamentalmente, possibilitou a fotografia

Apesar de recente, astrônomos já idealizavam tal conquista há cerca de duas décadas, imaginando como poderiam ‘iluminar’ os gases presentes próximos a um buraco negro. Esses gases são brilhantes em certos comprimentos de onda. Dessa forma, os cientistas foram capazes de detectar um denso ponto preto (o buraco negro) com um fundo brilhante (a nuvem de gases ao redor), chamada de “sombra do buraco negro”. 

Esse foi um evento histórico e um grande marco na astronomia. Sem dúvidas, a partir daqui haverão outros avanços nos estudos sobre buracos negros, elucidando muitas outras questões sobre esses corpos tão intrigantes e misteriosos. É esperado que muito em breve novas fotografias, com melhores resoluções, sejam tiradas e muitas novidades científicas sejam publicadas.

2º lugar: Ondas gravitacionais

Quatro anos após a primeira detecção do Bóson de Higgs, em 2016, pesquisadores anunciaram mais uma descoberta inovadora: a detecção de ondas gravitacionais. Desde a teoria geral da relatividade, proposta por Albert Einstein, era previsto que colisões entre grandes astros deveriam causar pequenas alterações, ou deformações, no espaço-tempo. Coisa de filme de ficção científica, não? Acontece que ás vezes a realidade supera a fantasia.

Tais oscilações no espaço-tempo foram confirmados por interferometria a laser, uma técnica de medição de distâncias com incrível precisão. Dois experimentos, um Italiano e um Estadunidense, foram capazes de mensurar mudanças espaço-temporais ao nível de uma fração do diâmetro de um próton (que equivale a uma quadrilionésima parte de um metro, algo extremamente inimaginavelmente pequeno). As oscilações são causadas por ondas (gravitacionais) resultantes de colisões entre buracos negros ou estrelas de nêutrons – estrelas colapsadas, extremamente densas, que antes do colapso teriam massa maior do que 10 vezes a do nosso sol.

Essa primeira detecção das antes desconhecidas ondas gravitacionais representa um marco de uma jornada que está apenas começando. Até 2018, foram contabilizadas um total de 11 detecções. É esperado que os crescentes avanços tecnológicos propiciem o desenvolvimento de detectores cada vez mais poderosos e que muita coisa inimaginável seja descoberta nos próximos anos.

1º lugar: Mudanças climáticas e aquecimento global

Simplesmente não há como não dar o primeiro lugar de nossa lista ao tema das mudanças climáticas. E o mais incrível é que, mesmo sabendo do enorme desafio que temos pela frente em relação a esse problema há algumas décadas, nossas ações nos últimos foram extremamente escassas. Ao longo dos últimos 10 anos, o dióxido de carbono em nossa atmosfera alcançou níveis sem precedentes nos tempos modernos, com temperaturas recordes sendo registradas a cada ano que passa. 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019 foram os cinco anos mais quentes já registrados desde 1880. 2016, particularmente, foi o ano mais quente desde que a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA) começou a registrar a temperatura global, há 139 anos. Em 2013, os níveis globais de CO2 atingiram 400 partes por milhão pela primeira vez na história da humanidade e, em 2016, os níveis de CO2 se estabilizaram acima desse limite.

Uma casa em chamas no Lago Conjola, New South Wales, Austrália, na véspera de Ano Novo. Os incêndios na Austrália estão ligados aos atuais (e acelerados) processos de mudanças climáticas (Matthew Abbot para o New York Times).

É  claro que tem havido debate a respeito, mas novamente ressaltamos que o nível de ações que deveríamos estar tomando, globalmente, ainda está muito distante. Se em 2014 o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (o famoso IPCC) divulgou seu quinto relatório sobre o estado atual e as conseqüências das mudanças climáticas, um ano depois uma luz no fim do túnel parecia surgir, com diversas nações do mundo negociando o Acordo de Paris – um acordo climático global que visa manter o aquecimento do planeta abaixo de 2 graus Celsius. Todavia, poucos anos mais tarde, um país do tamanho dos EUA (não falo de extensão territorial, mas sim de poder) anunciou a saída do acordo. Três anos mais tarde, o mesmo IPCC publicou outro relatório que descrevia os enormes custos do aquecimento até 1,5 graus Celsius até 2100 – o que provavelmente é o mínimo que o planeta enfrentará.

Nesse sentido, se a década de 2010 foi marcada sobretudo por nossa inação no que diz respeito às mudanças climáticas, nossa postura durante na década de 2020 PRECISA ser diferente. Se nossas emissões de carbono não forem drasticamente reduzidas até 2030, entraremos em um território nebuloso (e extremamente perigoso).  Não há mais espaço para o negacionismo climático, por mais que em muitos países ele ainda se encontre fortemente difundido – especialmente naqueles afetados pelo crescente autoritarismo que temos presenciado nos últimos anos. De qualquer maneira, nem tudo deve ser encarado com pessimismo. Existem sim pessoas saindo de suas zonas de conforto. Pesquisadores que têm se posicionado politicamente e buscado trabalhar com a sociedade civil para avançarmos com este debate. Principalmente desde o ano passado, protestos liderados por jovens ativistas varreram diversos países, ao redor de todo o mundo. Ainda há esperança, mas somente se começarmos a agir.

Esperamos que tenham gostado 😉

Texto escrito por Felipe Walter e Matheus Salles.

REFERÊNCIAS

https://www.nature.com/articles/d41586-019-03857-x

https://www.fisica.net/nuclear/afinal-qual-e-o-tamanho-do-proton.htm?i=1

https://theconversation.com/new-detections-of-gravitational-waves-brings-the-number-to-11-so-far-107962

https://agencia.fiocruz.br/ebola-0

https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/zika-virus/

https://portal.fiocruz.br/zika

https://www.saude.gov.br/noticias/svs/29701-testes-apontam-que-vacina-contra-zika-desenvolvida-no-brasil-previne-a-doenca-na-gestacao

https://www.metropoles.com/brasil/saude-br/ufba-desenvolve-teste-rapido-para-deteccao-do-coronavirus

https://skepticalscience.com/

https://www.nature.com/articles/d41586-019-03857-x

https://www.smithsonianmag.com/science-nature/top-ten-scientific-discoveries-decade-180973873/

https://www.nationalgeographic.com/science/2019/12/top-20-scientific-discoveries-of-decade-2010s/

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